terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Veja bem, meu bem

Ela acordou alguns minutos atrasada. Banho rápido e um dentre nove iogurtes lights que estão na geladeira e ela está pronta. Manobra o carro rapidamente, pois é muito segura de si no volante.
No primeiro farol, se abre o estojo de maquiagem. Alguma sombra para corrigir as fracas olheiras das noites mal dormidas. O trabalho a tem consumido. Um lápis preto pra fortalecer ainda mais seus traços e uma rápida escovada nos cabelos. A vida foi graciosa com ela, pois parece que passou o dia no salão.
No próximo cruzamento, leva uma fechada brusca de um ônibus. Ela buzina veemente, acena com a mão e pronuncia algumas palavras que não combinam com tanta beleza. O motorista ri e ela se enfurece. Afinal, sabe muito bem o que faz e fica indignada quando não é levada a sério.
Chega na agência. Sai do carro rapidamente puxando a bolsa. Sorridente, cumprimenta o Seu Valdisnei da portaria e agradece por ele ter manobrado o seu carro enquanto ela estava em reunião. Passa quase que correndo pelo corredor e entra na sua casa, digo melhor, sua sala. Algumas flores, fotos de fotógrafos famosos, reproduções de Vangó e Miró. Notebook sobre a mesa, cafeteira no canto da sala, poucos porta-retratos. CDs e DVDs espalhados por todo canto. Três diplomas emoldurados. Universitário numa universidade particular, mestrado na tão desejada pública e doutorado na Inglaterra. A mobília é toda antiga, escolhida a dedo.
O telefone toca, sua secretária diz que os clientes internacionais já estão prontos para reunião.
Mesa posta. Clientes, diretores e investidores. A reunião acaba em algumas horas.
Ela volta satisfeita para a sua sala. Sabe o quanto é boa no que faz. Sabe o quanto é bonita. Sabe o quanto se preparou para a vida.
Almoça com algumas amigas. Salada e grelhados. Conversam sobre moda, filmes, trabalho e homens. Ela não se alonga no assunto e diz que homem não faz parte dos seus planos.
A tarde é de telefonemas e acertos com prazos e produção. A campanha será monstruosa. Já era meio da noite e ela fecha a porta da sua sala, dá um adeus exausto para os sobreviventes na agência e desce as escadas calmamente.
Um trânsito de vinte minutos para andar três quilômetros faz ela ligar o rádio e cantar desenfreadamente. Beatles, Noel Rosa e aquela banda do seu amigo, último affair da sua vida.
Chega na academia, quinze minutos de esteira e revistas de comunicação, quinze de bicicleta e uma folheada rápida na Vogue. Aeróbica por outros quinze. É precisa como um relógio. Um banho mais rápido do que o da manhã, um lanche natural na lanchonete e lá está ela de volta no carro. Não pronunciou uma palavra nesta última hora.
Em casa, a banheira já está pronta pela sua empregada, fiel escudeira há seis anos. Ela escuta a novela que vem do quarto dos fundos e apenas sorri. Pega seu Sartre, que começou há um mês e não consegue terminar, entra na banheira e ali permanece por mais de uma hora.
Na king size, fica na dúvida entre episódios daquela famosa siticom e o filme francês indicado pelo amigo gay. Escolhe as risadas, mas em poucos instantes está encolhida, num mínimo canto da sua gigantesca cama. Cobre o rosto com cobertor e tenta esconder uma lágrima que desce desenhando a sua face. Parece que quer esconder o choro de alguém, mesmo estando sozinha. Talvez, dela mesma.
No fundo, ela só queria o amor. Mesmo que ela não saiba.

Um comentário:

PaulaF disse...

perfeito do começo ao fim.